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Em pauta, a verdade

“O mundo do século XXI remete aos navegadores que conquistaram novas terras no século XVI: eles sabiam onde estavam e tinham apenas uma pálida indicação de onde chegariam. Paradoxalmente, o desenvolvimento acelerado da tecnologia trouxa consigo, por incrível que pareça, muita insegurança e incerteza. Não nos perdemos mais com o Waze, mas nunca estivemos tão perdidos. Em nenhum momento tivemos tantos questionamentos sobre o futuro, tantas dúvidas sobre o que está por vir.”  Vilmar Rocha

 

No dia 27 de setembro, teve início formalmente em todo o Brasil a corrida pelos votos das eleições municipais, com a autorização aos candidatos a vereador e prefeito para fazerem suas campanhas eleitorais. Também por isso – mas não só por isso – a preocupação com a verdade voltou a ganhar espaço nas manchetes. Em seu rápido pronunciamento em cadeia nacional de rádio e televisão, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso, mencionou as fake news como uma das grandes preocupações que envolvem as eleições deste ano. 

De 23 de setembro, quando houve a sessão de abertura, a 4 de outubro, quando haverá a sessão de premiação dos vencedores, ocorre a 25ª edição do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. Na abertura da fase competitiva, houve a apresentação, em sessão especial para convidados no Drive-in Belas Artes, em São Paulo, de A Cordilheira dos Sonhos, um dos vencedores do Olho de Ouro de Melhor Documentário no Festival de Cannes no ano passado. Na extensa e variada programação do festival, questões relacionadas à verdade – seja a busca por ela, seja a ausência dela – estão presentes em muitos dos filmes ou documentários que estão sendo exibidos. 

Meu artigo, porém, é bem mais restrito e focaliza dois lançamentos de 2020 referentes ao tema e que me chamaram especialmente a atenção: um na forma de documentário, outro na de livro. 

O documentário, que vem provocando enorme repercussão, tem o título de O dilema das redes (The social dilemma, no original) e está disponível na Netflix. Dirigido por Jeff Orlowski, é constituído de depoimentos de conhecedores profundos das redes sociais, uma vez que foram seus criadores ou ajudaram a desenvolvê-las ocupando cargos de destaque em gigantes do setor como Google e Facebook.

 

Como bem observa Luiz Zanin Oricchio em sua crítica no jornal O Estado de S. Paulo: “Criadas a pretexto de aproximar as pessoas, elas [as redes sociais] agora são acusadas pela extrema polarização política, depressão de adolescentes, como divulgadoras de fake news, ameaças à democracia, controle das pessoas através de algoritmos e outras coisinhas mais”. 

Quem não teve oportunidade de assistir ao documentário pode ficar com a impressão de que há exagero nessas considerações. Não é, decididamente, a sensação dos que o assistiram. Principalmente de pais, professores e psicólogos que se defrontam permanentemente com algumas das consequências negativas propiciadas pelas redes sociais, muitas das quais inesperadas e não intencionalmente imaginadas por seus criadores. 

Dos vários aspectos merecedores de menção que o documentário possui, vou novamente me valer da crítica de Luiz Zanin Oricchio, para me referir a dois deles. O primeiro tem a ver com os impactos psicológicos causados pelo uso abusivo das redes sociais, que levaram um dos entrevistados no documentário a colocar em dúvida o  próprio direito à liberdade dos usuários, fazendo uma analogia no mínimo bastante intrigante: 

... hoje a palavra “usuário” só é utilizada em dois casos: para adictos em drogas e viciados em internet. Ambos desfrutam de uma liberdade apenas ilusória, pois, uma vez que se entra no jogo, não há mais poder de escolha. Drogas pesadas e redes sociais viciantes se apoiam em fraquezas humanas. No caso das redes, a necessidade primal de aprovação de um ser humano por outras pessoas. O reconhecimento pelo Outro como necessidade humana fundamental foi teorizado por um filósofo como Hegel e por um psicanalista como Freud. Faz parte da matriz psicológica da espécie. Desse modo, a pessoa que inventou o “like” teve um vislumbre de gênio. Criou um signo de reconhecimento e aprovação ao alcance de um toque na tela. Nada que envolva trabalho ou elaboração intelectual. Apenas isso: “Gostei”. O que se traduz em: “Gosto de você e o reconheço como parte do meu grupo” 

Seria maravilhoso se parasse por aqui. Mas, na realidade, não é o que necessariamente ocorre. Continua Oricchio: 

O contrário também é verdadeiro. Daí o número de adolescentes (e mesmo adultos) que se deprimem quando suas postagens não alcançam a repercussão desejada. Para não falar do pior, quando são alvo de bullying e “cancelamentos”, essa execrável prática das redes sociais aplicada aos que não partilham de determinado modo de pensar. A pressão psicológica pode ser devastadora nesses casos e já foram registrados casos de suicídios de “cancelados” por motivos diversos, seja uma opinião destoante do grupo ou a exposição de fotos ou vídeos comprometedores. 

O segundo aspecto é perceptível no plano coletivo e se refere diretamente ao tema central deste artigo, pois diz respeito à responsabilidade das redes sociais na criação de culturas paralelas sem vínculo com a realidade por parte de oportunistas, maus profissionais e aproveitadores que encontram seus semelhantes nas redes e exercem, em grupos, diversos tipos de influência perniciosa. 

Nesse hábitat de vale-tudo e fake news, [esses grupos] alteram disputas eleitorais e alçam incapazes ao poder. Ainda que de passagem, são citadas eleições de populistas de direita influenciadas pelas redes, como as de Trump e Bolsonaro. A votação em favor do Brexit teve forte manipulação das redes sociais e a interferência russa sobre a eleição americana também entra nessa pauta. 

A gravidade da situação torna-se ainda maior se consideramos a afirmação de um dos entrevistados de que “fake news têm seis vezes mais impacto do que notícias verdadeiras”. 

O livro, intitulado Sobre a verdade (Orwelll on Truth, no original), reúne trechos de romances, ensaios, cartas, resenhas e reportagens de George Orwell, copilados por David Milner[1] e foi publicado pela Companhia das Letras. 

Quem está familiarizado com os maiores sucessos de Orwell – A revolução dos bichos e 1984 – identificará, na sequência dos textos, várias das ideias que tiveram grande protagonismo nessas obras, todas elas relacionadas com a deturpação ou manipulação da verdade, exemplarmente representadas no lema do Partido liderado pelo Grande Irmão: “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”. 

George Orwell, pseudônimo de Eric Blair (1903-1950) é considerado um dos escritores mais importantes do século XX, Suas ideias e preocupações permanecem mais válidas do que nunca, descrevendo com assustadora precisão uma série de acontecimentos que ocorrem na atualidade em diferentes partes do mundo, pondo em cheque instituições que foram se consolidando ao longo de séculos como a democracia e a liberdade de expressão[2]

Vale a pena, nesse sentido, reproduzir um pequeno trecho da orelha do livro publicado em formato de bolso pela Companhia das Letras: 

Numa realidade dominada por fake news, as reflexões de Orwell sobre a verdade se tornam cada vez mais urgentes e necessárias. “Se não for combatido, o totalitarismo pode triunfar em qualquer parte”, escreveu o autor britânico. E o totalitarismo, na sua visão, fundamenta-se em uma noção de “mentira institucionalizada”, que nega qualquer possibilidade de liberdade de pensamento. 

Não é fácil apontar, entre os 40 textos selecionados que compõem o livro, os mais relevantes. Mesmo ciente dessa particularidade, ouso destacar dois deles: “Uma das diversões mais fáceis do mundo é desmistificar a democracia” (de “Fascism and Democracy”, The New Left News, fev. 1941); e “Necessariamente, a linguagem política consiste em grande parte de eufemismos, petições de princípio e mera vaguidão enevoada” (de “Politics and the English Language”, Payments Book, 11 dez. 1945; Horizon, abr. 1946). 

Muitos dos acontecimentos focalizados em Sobre a verdade, assim como muitos outros envolvendo figuras relevantes do cenário político atual, tanto no Brasil como no exterior, justificam o final da Introdução, assinada por Alan Johnson, com o qual encerro este artigo: “A luta em defesa da verdade objetiva ainda é fundamental e, embora Eric Blair tenha morrido em 1950, George Orwell continua bem vivo”. 

Referências bibliográficas e webgráficas

 

FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Tradução de Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. 

ORICCHIO, Luiz Zanin. Comunicação digital no paredão. O Estado de S. Paulo, 19 de setembro de 2020, p. H2. Disponível em https://www.pressreader.com/brazil/o-estado-de-s-paulo/20200919/282299617596042. 

ORWELL, George. Sobre a verdade. Tradução de Claudio Alves Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 

_______________ 1984. Tradução de Wilson Velloso. 17 ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1984. 

_______________ A revolução dos bichos. Tradução de Heitor Aquino Ferreira. São Paulo: Globo, 2003. 

ROCHA, Vilmar. Presente e futuro da democracia no Brasil. In FIGUEIREDO, Rubens (Organizador). Brasil nos anos 2020: desafios e possibilidades. São Paulo: Scriptum Editorial, 2020, pp. 60-72. 

Referências cinematográficas 

O dilema das redes

Título original: The social dilemma

Direção: Jeff Ostowski

Produção: Larissa Rhodes

Roteiro: Jeff Orlowski, Davis Coombe e Vickie Curtis

Elenco: Skyler Gisondo (Ben), Jason Lanier, Kara Hayward (Cassandra), Sophia Hammons (Isla), Vincent Kartheiser (Al), Tristan Harris, Shoshana Zuboff, Renee DiResta, Aza Raskin, Chris Grundy (Step-Dad), Barbara Gehring (Mom)

Distribuído por: Netflix

Data de lançamento: 26 de janeiro de 2020 

A Cordilheira dos Sonhos

Título original: La Cordillera de los Sueños

Direção: Patricio Guzmán

Gênero: Documentário político

Produção: Franco-chilena

Duração: 75 minutos

 



[1] Com base em The Complete Works of George Orwell, organizado por Peter Davison (Londres: Secker & Warburg, 1998).

[2] Vilmar Rocha chamou a atenção para este fenômeno no capítulo intitulado Presente e futuro da democracia no Brasil (de sua autoria), presente no livro Brasil nos anos 2020: desafios e possibilidades, organizado por Rubens Figueiredo e recém-lançado pelo Espaço Democrático. Na oportunidade, Vilmar Rocha afirma que “o mundo da virada dos anos 2020 é pródigo em exemplos que indicam a ascensão de formas não democráticas de liderança ou movimentos que representam uma reversão na caminhada liberal-democrática imaginada por Francis Fukuyama em O fim da história (artigo publicado na revista The National Interest, em 1989, posteriormente ampliado e lançado em livro com o título de O fim da história e o último homem). São os casos de: Victor Orban, na Hungria; Jörg Haider, na Áustria; Geert Wilders, na Holanda; Jaroslaw Kacynski, na Polônia; Mariene Le Pen, na França; Donald Trump, nos Estados Unidos; Jair Bolsonaro, no Brasil; a erupção do nacionalismo de direita, na Itália; a onda conservadora na Turquia, nas Filipibas e na Indonésia; o Brexit, na Inglaterra; a revolta dos coletes amarelos, na França. Some-se a isso a questão de duas potências mundiais de incontestável poder econômico, demográfico, geopolítico e militar não rezarem exatamente pelo que poderia ser considerada a cartilha democrática: China e Rússia”.


Luiz Alberto Machado - Economista, graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Mackenzie, mestre em Criatividade e Inovação pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal), é sócio-diretor da empresa SAM - Souza Aranha Machado Consultoria e Produções Artísticas e diretor adjunto do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial. Foi presidente do Corecon-SP e do Cofecon.

 

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